Os tempos mudam. Mude antes deles

Em abril de 2009, eu acabava de mudar de lado no balcão. Deixava uma carreira de mais de 25 anos em redação para assumir um desafio e tanto: a comunicação da Presidência da Câmara dos Deputados. Para assimilar um pouco a enorme mudança, planejava tirar alguns dias de férias antes de encarar o novo papel. Não deu. No primeiro dia das supostas férias, explodiu um caso envolvendo dezenas de parlamentares. Eles eram acusados de usar indevidamente a cota de passagens aéreas que recebiam para se deslocar entre Brasília e seus Estados. Havia um pouco de tudo: passagens doadas a parentes, assessores, usadas em viagens de férias ao exterior e até vendidas para agências de turismo.
Ao começar a enfrentar o problema, me parecia claro que a Câmara deveria reconhecer as falhas e corrigi-las imediatamente. Esse era o entendimento da Presidência da Casa e da maioria dos órgãos técnicos. A solução poderia ser até fácil se não fosse um problema: ela esbarrava na teimosia da imensa maioria dos parlamentares, que não conseguiam entender porque estavam sendo acusados de fazer algo de errado. Afinal, vinham simplesmente seguindo a prática adotada pelo parlamento por décadas.
Além disso, exceção feita à venda de passagens, as outras práticas eram legais. Obedeciam as normas da Câmara.
Lembro de um veterano parlamentar, com mais de 20 anos, esbravejando: "Sou um homem bem casado! Ninguém vai me proibir de usar as passagens para trazer minha mulher para Brasília toda semana!"
Quando a Mesa Diretora baixou um ato determinando que as passagens só poderiam ser usadas pelo parlamentar e dentro do Brasil, ensaiou-se uma rebelião nos cantos mais distantes do Plenário. Um deputado em especial encarnava essa revolta. Consultado sobre como lidar com o caso, sugeri esperar alguns dias. Deixar que voltasse a seu Estado e sentisse a pressão da opinião pública. No sábado à tarde, ele telefonou. Depois de tentar passear com a família pelo principal shopping center de sua cidade, viu que o discurso belicoso em defesa dos privilégios podia render aplausos entre os deputados, mas era rejeitado por quem votava nele. Mudou imediatamente de posição e passou a defender as reformas.
O "olhar estrangeiro" que eu trazia foi fundamental para enfrentar essa primeira crise. Me permitiu perceber que o fato de algo ser usual ou mesmo estar dentro das normas não garante sua legitimidade. Para ser legítimo, precisa ser aceito pela sociedade. E aquela prática não era.
O grande erro de boa parte dos políticos envolvidos foi não ter percebido a mudança na opinião pública. O uso das passagens pela família dos parlamentares nunca tinha sido algo especialmente escondido. Mas, quando focalizado pelo holofote da mídia, mostrou-se algo inaceitável.
Houve uma evolução na cobrança da opinião pública. E não foi a primeira vez. Até poucos anos antes, além das passagens de ida e volta a seus estados, cada deputado tinha direito a um passeio por mês ao Rio de Janeiro, a pretexto de visitar os órgãos federais que ainda funcionavam na antiga capital federal. A prática vigorou até que a cobrança da mídia e da sociedade fizesse com fosse abandonada.
Isso não acontece apenas na política. A recente crise financeira de Wall Street colocou em evidência os bônus e outras vantagens oferecidas pelos bancos e financeiras americanas a seus principais executivos. Apresentadas num contexto em que o sistema financeiro era acusado de não honrar seus compromissos com os poupadores, essas vantagens foram vistas com revolta. O socorro aos bancos dado pelo governo americano incluiu como condição a revisão desse tipo de contrato e pagamentos.
A moralidade evolui junto com a sociedade. Um dia, a escravidão foi aceita por parte da opinião pública. A revolução industrial teve o trabalho infantil como uma de suas forças motrizes. Hoje, quem é pego descumprindo as convenções trabalhistas enfrenta não apenas a lei, mas o desprezo de clientes, parceiros e fornecedores.
O avanço das regras coloca um desafio enorme. Ou você percebe essas mudanças e se antecipa a elas, ou pode ser obrigado a mudar no bojo de um escândalo capaz de afetar sua credibilidade. Quem não toma o caminho certo antes pode não ter chance alguma de tomá-lo.
Nesse sentido, o olhar estrangeiro pode ser um auxílio decisivo. É sempre bom ter quem veja suas práticas com as lentes da sociedade.